sexta-feira, 3 de outubro de 2014

Poesia: Lírio Roxo / Ponto de Orvalho










Lírio Roxo


Viajei por toda a Terra
Desde o norte até ao sul;
Em toda a parte do mundo
Vi mar verde e céu azul.

Em toda a parte vi flores
Romperem do pó do chão,
Universais, como as dores
Do mundo
Que em toda a parte se dão.


Vi sempre estrelas serenas
E as ondas morrendo em espuma.
Todo o Sol um Sol apenas,
E a Lua sempre só uma.


Diferente de quanto existe
Só a dor que me reparte.
Enquanto em mim morro triste
Nasço alegre em toda a parte.

(Poesia Completas)
António Gedeão

Ponto de Orvalho

Nem se chega a saber como
Um inusitado sorriso,
Um volver de olhos doentes,
Um caminhar indeciso
E cego por entre as gentes,
Chamam a si, aglutinam,
Essa dor que anda suspensa
(e é dor de toda a maneira)
Como o vapor se condensa
Sobre núcleos de poeira.


É essa angústia latente
Boiando no ar parado
Como um trovão iminente,
Que em muda voz se pressente
Num simples olhar trocado.
Essa angústia universal,
Esse humano desespero,
Revela-se num sinal,
Numa ferida natural
Que rói com lento exagero.
Não deita sangue nem pus,
Não se mede nem se pesa,
Não diz, não chora, não reza,
Não se explica nem traduz.
A gente chega, respira,
Olha, sorri, cumprimenta,
Fala do frio que apoquente
Ou do suor que transpira,
E pronto, sem saber como,
Inútil, seco, vazio,
Cai na penumbra do rio,
Emerge, bóia, soçobra,
Fácil e desinteressado
Como um papel que se dobra
Por onde já foi dobrado.


(Poesia Completas)
António Gedeão

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